Em busca da fotossíntese artificial: técnica pode ajudar a remover CO2 do ar e criar combustíveis renováveis e outros produtos
quarta-feira, outubro 19, 2022
Luz do sol, ar, água e mais nada. É só disso que a natureza precisa para sustentar – direta ou indiretamente – praticamente toda a vida na Terra. Esses são os ingredientes fundamentais do processo de fotossíntese, um conjunto complicado de reações químicas que as plantas e alguns outros organismos usam para converter o gás carbônico presente na atmosfera nos carboidratos que formam a base das principais cadeias alimentares do planeta.
Se a fotossíntese é poderosa o suficiente para fazer a natureza funcionar, dominar seus mecanismos poderia muito bem ser um ponto de virada para a humanidade. É exatamente por isso que inúmeros grupos de cientistas ao redor do mundo vêm trabalhando com afinco para ‘domesticar’ a reação.
O pote de ouro no fim desse arco-íris é chegar numa versão artificial da fotossíntese que permita dar usos inteiramente novos ao gás carbônico, que, hoje, nos limitamos a despejar na atmosfera em quantidade. É um pote de ouro e tanto. Divulgado poucas semanas atrás pela Global CO2 Initiative, da Universidade de Michigan, o relatório “Implementando a captura e uso do CO2 em escala e de forma rápida” estimou que tecnologias de captura e uso de carbono (CCU) poderão movimentar alguns trilhões de dólares.
Segundo Volker Sick, professor do curso de engenharia mecânica da Universidade de Michigan e diretor da Global CO2 Initiative, a maior fonte de demanda por produtos de carbono reciclado virá do setor de aviação. “Por volta de 2050, a estimativa para o mercado anual de produtos de captura e utilização de carbono para a produção de combustível de aviação é de quase US$ 2 trilhões”, disse, na época do lançamento do documento.
A fotossíntese artificial é uma das tecnologias que estão na corrida para viabilizar esse novo mercado. “De forma resumida: o processo usa placas de material semicondutor para mimetizar o que as folhas das plantas fazem e transformar a energia do sol em energia química”, explica a química industrial e doutoranda da Universidade do Vale do Taquari (Univates) Laís Bresciani, que vem pesquisando o assunto desde a graduação.
Acontece que gerar produtos úteis usando apenas a energia da luz do sol não é coisa das mais fáceis. “O gás carbônico é muito estável, não sendo trivial convertê-lo em outros produtos”, explica Neuman Solange de Resende, professora e pesquisadora do Núcleo de Catálise do Programa de Engenharia Química da COPPE, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela conta que os primeiros estudos na área de fotocatálise – nome que se dá ao uso da luz como acelerador de reações químicas – começaram ainda nos anos 1970 com a descoberta das propriedades do titânio.
Nos primeiros anos, no entanto, o foco era quebrar poluentes; foi só na virada do milênio que os pesquisadores passaram a se interessar mais pela síntese de novos produtos a partir de carbono. “A parte da síntese que faz parte da fotossíntese só veio bem depois. O mundo só começou a olhar com atenção para essas reações nos anos 2000”, diz a pesquisadora, acrescentando que encontrar os catalisadores certos para o trabalho tem sido difícil. “Investimos esses 20 anos no desenvolvimento dos catalisadores”, completa.
Amplo espectro
Os primeiros fotocatalisadores identificados usavam a luz no espectro do ultravioleta (UV) para reduzir o CO2. Isso não era bom o suficiente. “Não chega tanto ultravioleta assim na superfície do planeta. Tivemos que aprimorar os catalisadores para poder usar luz do espectro visível”, prossegue a pesquisadora da UFRJ.
É um trabalho que ainda está em andamento, aponta Lais Bresciani. “Essa ainda é uma tecnologia muito nova. Nosso desafio é o desenvolvimento de materiais que sejam eficientes para produzir os semicondutores. Estamos tentando modificar os materiais dos semicondutores para ampliar o espectro da luz solar que os deixa ativos”, conta.
Ampliar o espectro de luz que pode ser absorvido pelos fotocatalisadores garante mais energia para alimentar as reações e, dessa forma, superar a resistência do CO2. “Tem mais energia [na luz do espectro] visível do que no UV, então [se o catalisador] funcionar na região do visível é melhor”, ensina a professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Maria Valnice Boldrin Zanoni.
Apesar da dificuldade, tem havia avanços. Só o grupo de pesquisa liderado por ela já trabalhou com 20 fotocatalisadores diferentes ao longo dos anos. Entre as pesquisas realizadas no campus da Unesp em Araraquara, no interior de São Paulo, está um teste inédito com cloroplastos – uma estrutura presente nas células de plantas e algas diretamente ligada à fotossíntese.
“Tiramos cloroplastos da folha do espinafre e fixamos sobre uma placa semicondutora e mostramos que era possível fotoativar o sistema para conseguir a redução da água”, relata, acrescentando que o sistema obteve um bom rendimento.
Processos modernos
Por mais fundamental que seja, identificar os catalisadores ideais é só um dos muitos nós que ainda precisam ser desatados para que a fotossíntese artificial deixe de ser uma simples curiosidade acadêmica para se tornar uma tecnologia realmente útil.
Um passo importante nessa direção pode ter sido dado em meados de agosto, quando um grupo de pesquisadores da Universidade de Cambridge publicou na respeitada revista “Nature” os resultados de um projeto que aplicou técnicas modernas de fabricação inspiradas na indústria de eletrônica na produção de “folhas artificiais” flexíveis.
De acordo com Virgil Andrei, pesquisador do Departamento de Química de Cambridge e um dos autores do estudo, a comunidade científica já consegue fabricar sistemas de fotossíntese artificial com boa performance há bastante tempo, mas tem falhado em levar seus protótipos para o mundo real porque eles acabam sendo volumosos e frágeis demais para serem fabricados em escala.
“Nossa folha artificial consiste em uma camada muito fina de metal entre substratos de plástico. Conseguimos reduzir em cerca de 15 vezes a massa do sistema e isso gera uma vantagem econômica”, diz o pesquisador. “Precisamos demostrar que podemos fabricar folhas artificiais que superem a escala dos centímetros quadrados e cheguem à dos metros quadrados”, pondera, acrescentando que, em sua opinião, os primeiros protótipos a atingir essa escala poderiam ser desenvolvidos dentro de mais cinco anos.
Fonte de gás carbônico
Nada disso quer dizer já que estejamos perto de capturar o gás carbônico diretamente do ar atmosférico como a fotossíntese natural faz. “Existem outros grupos de pesquisa que vêm trabalhando em tecnologias de captura de carbono [diretamente do ar]. (...) O que a gente quer é um ciclo neutro. Você tira o CO2 do ar, concentra ele e alimenta no sistema de conversão”, sonha Virgil.
Não significa que será preciso esperar a solução de mais esse problema. É muito mais fácil ir até onde o carbono está disponível em grande quantidade, como indústrias que tenham processos carbono-intensivos. “Faz muito mais sentido instalar esses sistemas onde o carbono é gerado. Você pode acoplar [a fotossíntese artificial] em indústrias que emitem grandes quantidades de gás carbônico”, defende Neuman Solange.
Esse é um dos focos da pesquisa de Laís, que quer usar fotossíntese artificial para aumentar a eficiência da produção de biogás. Só metade do biogás é formada por metano, que pode ser usado diretamente como biocombustível. Da metade restante, o gás carbônico é o mais comum – 30% do total. Encontrar formas de remover o CO2 da mistura e, de quebra, convertê-lo num coproduto útil seria um ganho. É aí que entra a pesquisa de doutorado de Laís. “Eu posso usar a tecnologia para converter esse CO2 em produtos como metanol ou etanol e, dessa forma, aumentar o potencial energético do biogás”, diz.
Mas o foco principal de seu doutorado é a conversão do próprio biometano numa fonte para a produção de hidrogênio verde. “Hoje a maior parte do hidrogênio vem de fontes fósseis. O biogás seria uma alternativa renovável”, complementa.
Combustíveis renováveis e outros produtos
O projeto de Laís é bastante representativo das pesquisas em fotossíntese artificial. A meta de uma parte importante da comunidade que trabalha com o tema é a produção de combustíveis renováveis.
A produção de energéticos, no entanto, não é o único horizonte para a fotossíntese artificial. As reações nas quais Laís vem trabalhando, por exemplo, também geram acetona, um produto importante para a indústria química. “Isso também é relevante e nada impede que outros produtos além de energéticos sejam gerados”, reconhece.
“Com a composição adequada no catalisador eu posso direcionar o produto”, explica Neuman Solange. “Podemos converter o dióxido de carbono em monóxido de carbono ou metano, que são moléculas mais reativas, e conseguir cadeias mais longas, como ácido acético, ácido fórmico ou propeno, que são usados em processos industriais. O que a gente quer é uma fonte de produção barata e renovável capaz de remover um passivo do planeta que é o gás carbônico”, ressalta.
Fonte: Um só Planeta
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