Mudanças climáticas corroem as pequenas lavouras no Norte de Minas
terça-feira, agosto 24, 2021
Os agricultores familiares do Norte de Minas já sentem diretamente os impactos das mudanças climáticas, que aumentaram nos últimos anos. Atualmente, a região acumula perdas de mais de 54 mil toneladas nas pequenas lavouras. O Norte de Minas enfrenta também a destruição das veredas, que perderam a abundância do passado, descrita nas obras do escritor Guimarães Rosa. Esse cenário de degradação é o tema desta matéria da série de reportagens sobre os efeitos das mudanças climáticas, que o Estado de Minas publica desde domingo.
“O Norte de Minas é uma região semiárida, que tem chuvas irregulares. Com as mudanças climáticas, percebemos que essa questão está mais aguçada nos últimos anos”, constata Samuel Leite Caetano, assessor técnico do Centro de Agricultura Alternativas do Norte de Minas (CAA-NM), que auxilia os pequenos produtores na superação das adversidades.
“As chuvas, que no passado se iniciavam em meados de setembro, não vêm mais na época certa. O agricultor prepara a terra e planta a semente. Aí, ocorrem uma ou duas chuvas. Depois, a chuva vai embora e a roça fica perdida”, descreve Caetano. “Muitas vezes, o agricultor planta. A roça fica bonita e cresce. Mas na hora da floração do feijão ou do milho, vem o sol forte e acaba com tudo”, observa o técnico.
Ele salienta que o grande obstáculo da região não é exatamente a falta de chuvas, mas a má distribuição delas. “Nos últimos, a região alcançou média de 700 a 900 milímetros anuais de chuvas. O problema é que elas são concentradas em determinado período. Antigamente, chovia 30 dias seguidos. Hoje, chove em apenas um dia. No outro, o sol bate forte e acaba destruindo a produção”, explica.
O assessor técnico salienta que as mudanças climáticas resultam da degradação da natureza, sobretudo pelo desmatamento do cerrado, da caatinga e da floresta amazônica. “Esses biomas atuam no sentido de promover o equilíbrio hidrológico e climático do planeta. Com a destruição deles, as mudanças climáticas tendem a ser aceleradas. O que, talvez, ocorreria em séculos, pode acontecer em anos”.
Samuel Caetano destaca que dentro dessa dura realidade, o CAA-NM auxilia os pequenos agricultores, orientando as práticas ambientalmente corretas para a superação das alterações do clima. “Orientamos o manejo adequado da agrobiodiversidade, com técnicas e medidas paliativas, como a construção de barraginhas, o cercamento e recuperação de nascentes, o agroextrativismo e os sistemas agroflorestais, voltados para a produção de alimentos em consórcio com a manutenção das espécies do cerrado”.
Samuel Caetano chama a atenção para a importância das “sementes crioulas” – de milho, feijão e outras espécies, mais resistentes às altas temperaturas e à baixa disponibilidade de água. Há algum tempo, o uso delas é incentivado pelo CAA-NM junto aos pequenos agricultores e povos tradicionais do Norte de Minas já como estratégica para a superação das mudanças climáticas.
“As sementes crioulas são adaptadas ao semiárido. São sementes mais resistentes e vêm passando por um processo de seleção genética natural. São sementes que conseguem produzir mais e dão autonomia para os pequenos agricultores. Elas são manuseadas há séculos pelos povos e comunidades tradicionais”, destaca o representante do Centro de Agricultura Alternativa.
Perdas elevadas
Sob o efeito nefasto das mudanças climáticas, o Norte de Minas sofreu elevadas perdas nas lavouras no ano chuvoso 2020/2021 e, atualmente, enfrenta o agravamento da falta de água, com 89 municípios em situação de emergência em função da escassez hídrica.
Os prejuízos decorrentes das adversidades climáticas constam em relatório agroclimatológico divulgado pela coordenação regional da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-MG) em Montes Claros, na quarta-feira (18/08). De acordo com o levantamento, as quedas nas lavouras de milho, feijão, arroz e sorgo em 22 municípios da região foram de 51,6%. A produção, que deveria ser de 105.690 toneladas, foi reduzida para 51.122 toneladas, com a perda de 54.568 toneladas. A maior perda foi no feijão, que teve um prejuízo de 73,9%.
A Emater-MG cita a irregularidade na distribuição de chuvas no Norte do estado no ano agrícola 2020/2021, com veranico entre os meses de outubro e janeiro e concentração da densidade pluviométrica em fevereiro. “O volume de chuvas não foi suficiente para a reposição de aquíferos e mananciais devido aos déficits de anos anteriores, afetando, principalmente, o volume acumulado em barragens da região”, diz relatório.
O órgão lembra que os efeitos negativos da seca se acumulam ao longo de 10 anos. “Desde 2011 que o Norte de Minas vem acumulando prejuízos com as safras agropecuárias, com reflexos negativos nas áreas econômica, social e ambiental – com reflexos na vida das populações rurais e urbanas”, relata.
“Diante desse quadro histórico de convivência com os efeitos das secas e estiagens na região semiárida do Norte de Minas, muitas comunidades e centros urbanos ainda têm dificuldades de acesso à água potável, necessitando de apoio governamental, através da implementação de políticas públicas permanentes, de forma a melhorar a qualidade de vida das populações urbanas e rurais dessa região”, alertam os técnicos da Emater-MG.
Veredas cada vez mais ameaçadas
As veredas do Norte de Minas são retratadas como locais de disponibilidade de muita de água no sertão na obra do escritor Guimarães Rosa. Hoje, a fartura se limita às páginas dos livros. As veredas também são altamente atingidas pelos efeitos das mudanças climáticas, sofrendo a redução do volume hídrico.
Os impactos ambientais nas veredas são observados pela professora e pesquisadora Maria das Dores Magalhães Veloso, a Dora, do Laboratório de Ecologia Vegetal (Leve), vinculado ao Departamento de Biologia Geral da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Há mais uma década ela monitora o ecossistema na região.
“No Norte de Minas, os efeitos das mudanças climáticas são potencializados pelas pressões antrópicas que o ambiente vem sofrendo no decorrer do tempo e são visualizados por todos de forma contundente, através das mudanças na paisagem. É muito comum na nossa região depararmos com rios intermitentes, e, na grande maioria, secos, além de mudanças estruturais na vegetação, como a conversão de fitofisionomias, assim como o empobrecimento e ressecamento gradual dos solos”, afirma Dora.
A pesquisadora afirma que, diante da intensidade dos efeitos adversos das mudanças climáticas, as expectativas para o futuro das veredas são “desalentadoras”. Ela lembra que vem acompanhando os impactos ambientais nas veredas desde 2008. “As mudanças vão desde a entrada de solo arenoso na zona turfosa e úmida, secamento das calhas que funcionavam como pequenos córregos que inundavam a zona de fundo das veredas e serviam de fonte para as comunidades veredeiras, conversão de vereda em cerrado, até o abandono das terras em beira de veredas pelos seus moradores, que já não conseguem produzir para o seu sustento e não têm água suficiente para a sua manutenção”, relata.
A pesquisadora da Unimontes salienta que todos os impactos da degradação sofrida pelo cerrado acabam atingindo também as veredas, locais de nascente, “por serem ambientes sensíveis ao déficit hídrico”. Entre os problemas está a transformação de veredas em área de cerrado, com o secamento das fontes de água,um processo, até então, irreversível.
Dora destaca que vem “atuando em várias frentes”, com a realização de pesquisa “para entender os processos ecológicos interativos em ambientes de veredas, como a ciclagem de nutrientes”. Desde 2012, conta, ela trabalha na restauração de áreas de veredas nos municípios de Januária e Bonito de Minas, no Norte de Minas; e de João Pinheiro (Noroeste do estado). A partir dos seus projetos, já foram plantadas cerca de 18 mil mudas, viabilizadas por meio de parcerias com a iniciativa privada, tendo como objetivo a recuperação das veredas.
Na opinião da especialista, o poder público deve priorizar a inserção do veredeiro “nos processos de restauração e preservação das veredas, através de projetos capazes de garantir a sua sustentabilidade, assim como a sustentabilidade deste ecossistema”. E nesse sentido, salienta, uma das formas de restauração que tem se mostrado mais eficiente é a agroflorestal”.
Construção de barragens em questão
O poder público tem investido na construção de barragens com a finalidade de segurar água e até mesmo para regularizar a vazão dos rios. Mas não adianta implantar os barramentos se não houver a recuperação das nascentes, pois, sem os minadouros, não vai existir água para abastecer os reservatórios, opina o professor e pesquisador Flávio Pimenta de Figueiredo, do câmpus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Montes Claros. Doutor em engenharia agrícola, ele trabalha com gestão de recursos hídricos e ambientais.
“O 'plantio' de água não está nas barragens, mas sim nas áreas de recarga, nas mais altas das bacias hidrográficas, nas nascentes e nas veredas. Se esses locais estiverem protegidos, a água da chuva vai cair e infiltrar e carregar os aquíferos, recuperando automaticaments os rios, as águas superficiais”, explica Pimenta.
O pesquisador aponta as voçorocas como uma dos fatores da degradação ambiental que mais devastam as nascentes e rios. “As voçorocas são consequência das ações humanas, resultantes do desmatamento, da construção de estradas e de residências, das atividades agropecuárias e da mineração em áreas de recarga. Tudo isso causa o processo erosivo”, lamenta Flávio Pimenta.
Ações do estado
Consultado pela reportagem, o governo do estado informa que vem acompanhando as consequências da estiagem prolongada em Minas e tomando providências para amenizar os danos, “por meio de um Plano de Ação para o período”. As ações envolvem as secretarias de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) e de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa), informou o governo. Entre elas, transporte e distribuição de água na região, emissão de alertas e apoio aos municípios que enfrentam problemas com a estiagem.
O governo do estado destaca ainda que o Norte de Minas é beneficiado com o Programa Água Doce (PAD), que visa levar água de qualidade, própria para o consumo, a cerca de 30 mil pessoas no semiárido mineiro até o final de 2021, beneficiando 69 comunidades rurais na região, com a implantação, recuperação e gestão de sistemas de dessalinização, com investimentos de R$ 15,4 milhões – sendo R$13,9 milhões empenhado pelo governo federal e R$1,5 milhão de contrapartida do estado.
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