Resíduos antes descartados do açaí viram cosméticos, papéis e plásticos, além de fonte de energia
terça-feira, janeiro 10, 2023
A Amazon Oil, empresa de Ananindeua, no Pará, espera lançar nos próximos meses um sabonete com óleo de castanha-do-pará (Bertholletia excelsa) e andiroba (Carapa guianensis Aubl.) enriquecido com fibras que envolvem as sementes de açaí (Euterpe precatoria). Testes em fase final de conclusão realizados pela empresa mostraram que os caroços – que contêm a semente e as fibras – têm boa capacidade para agir como esfoliante para a pele, um uso, por sinal, já explorado pela Beraca Ingredientes Naturais, do grupo norte-americano Clariant, sediada na capital paulista. Desde 2021, a Natura produz dois cremes hidratantes, um para o rosto e outro para as mãos, com um extrato bioativo retirado do caroço do açaí.
Os cosméticos com substâncias extraídas do caroço de açaí são apenas as formas mais recentes de aproveitar um material abundante. De acordo com nota técnica do Centro de Tecnologia das Indústrias Química e Têxtil do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai-Cetiqt), de uma produção estimada em 2019 em 1,6 milhão de toneladas (t), cerca de 60%, o equivalente a 900 mil t, foi descartada pelos produtores, geralmente pequenos, e se acumula em calçadas e lixões de cidades como Belém, no Pará, e Manaus, no Amazonas. Os moradores desses municípios são grandes consumidores de sucos, sorvetes ou bebidas energéticas à base da polpa de açaí. As sementes, também chamadas de caroços, representam cerca de 70% da massa do pequeno fruto amazônico de cor púrpura.
Os caroços já são usados comercialmente como combustível para a geração de energia renovável, como fertilizante, e, em pequena escala, para a produção artesanal de pulseiras, brincos e colares. Também poderão ganhar outros usos, como na produção de celulose para papel e de plástico biodegradável, assim como para conservante de alimentos, de acordo com algumas possibilidades aventadas por pesquisas recentes.
As propriedades dos resíduos do açaí, que fundamentam seus novos usos, tornam-se mais evidentes, em parte como resultado de estudos de universidades e centros de pesquisa feitos nos últimos 20 anos – uma das possibilidades é a produção de polímeros para próteses cranianas, apresentada em 2012 por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Por ser curta, a fibra do caroço não precisa de processamento para ser incorporada ao sabonete e consegue remover as células antigas da pele”, diz o diretor de negócios da Amazon Oil, Klaus Gutjahr, que acompanha os testes do Departamento de Química, iniciados em 2021. “O extrato da semente de açaí, em sinergia com o óleo da polpa, contribui para neutralizar os radicais livres [resíduos celulares]”, observa a líder global de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da Natura, Roseli Mello.
“De 100 gramas (g) do caroço, é possível extrair 45% de celulose pura, do tipo I, semelhante à produzida a partir das madeiras de pinus e eucalipto”, diz a engenheira de produção Silma de Sá Barros, da Escola de Engenharia de Lorena da Universidade de São Paulo (EEL-USP), primeira autora de um artigo detalhando essas propriedades publicado em junho de 2021 na revista Research, Society and Development. Em seu doutorado ela desenvolve compostos poliméricos com resíduos da agroindústria. Em parceria com o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), em Manaus, ela trabalha em um projeto encomendado por uma empresa, cujo nome não pode ser divulgado por razões contratuais: o desenvolvimento de caixas de papelão com celulose de sementes de açaí recolhidas das ruas, limpas e moídas.
“Como há resíduos descartados durante quase todo o ano, não falta matéria-prima”, observa, ao perseguir novos usos para as sementes, que, ela se recorda, seu avô replantava no quintal da casa onde moravam, no interior do Amazonas. Testes preliminares de outro estudo da equipe do CBA e da EEL-USP indicaram que o caroço moído poderia ser usado diretamente na produção de compostos poliméricos.
Na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, a cientista de alimentos Priscilla Siqueira Melo purificou um extrato da semente seca e moída de açaí com potencial para ser usado como antioxidante natural em alimentos e em cosméticos. Em um artigo de março de 2021 na revista Industrial Crops & Products, ela descreve um método de baixo custo para a extração: “Conseguimos trabalhar em temperatura ambiente, de 25 graus Celsius [ºC], com possibilidade de recuperação do etanol usado na solução”, diz a pesquisadora. “O material que sobra da extração poderia ser usado como fonte de fibras em alimentos processados.”
Melo começou a estudar as sementes de açaí durante o doutorado na Esalq-USP, entre 2012 e 2016. Em busca de resíduos agroindustriais que pudessem ser usados como alternativas aos antioxidantes sintéticos, ela testou as sobras de café, laranja, cupuaçu, cajá, tomate, goiaba e, com os melhores resultados, uva e açaí. O artigo sobre o potencial antioxidante do extrato da semente de açaí, fruto de seu doutorado, lhe rendeu o Prêmio Capes Natura Campus de 2018 na categoria Biodiversidade.
Fonte de energia
Na refinaria de alumínio da Alunorte em Barcarena, no Pará, pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do grupo norueguês Hydro avaliam a viabilidade técnica e econômica de usar os caroços de açaí como fonte de energia para os fornos. “Queremos inicialmente trocar por caroços 5% do carvão mineral de uma das caldeiras, que consome aproximadamente 30 t de combustível por hora”, diz o engenheiro mecânico Manoel Nogueira, da UFPA, coordenador da pesquisa. Os testes indicaram que seria preciso substituir 1,5 t de carvão por 2,6 t de caroço, por causa de seu menor poder calorífico, implicando um consumo de 1.900 t por mês ou 22.800 t por ano. Os pesquisadores identificaram a possibilidade de obterem 390 mil t por ano num raio de 160 km da fábrica.
Empresas coletoras de resíduos, orientadas pelos pesquisadores, devem fornecer sementes limpas. Elas formam pilhas de 10 a 15 metros (m) de altura por 10 m de diâmetro e permanecem a céu aberto e depois em espaço coberto por dois a três meses, revolvidas constantemente para secarem de maneira uniforme e a umidade cair de 80% para 20%. As simulações por computador indicaram que será preciso reduzir a temperatura de operação das fornalhas das caldeiras de 950 ºC para 850 ºC. Os testes nos fornos devem ser feitos ainda neste ano.
“A biomassa do açaí é uma alternativa como fonte de energia renovável, porque, diferentemente da lenha, não requer certificação de origem”, observa Nogueira. Mas há uma ressalva: essa nova forma de queima emite mais dióxido de carbono (CO2) do que o carvão mineral. Segundo o pesquisador da UFPA, 1 kg de carvão emite 2,6 kg de CO2, enquanto 1,7 kg de resíduos de açaí, necessários para gerar a mesma quantidade de energia, emite 3 kg de CO2. “Mas o balanço da emissão de carbono do caroço é próximo ao neutro, porque sua queima apenas devolve o que o açaizeiro absorveu da atmosfera ao crescer, enquanto o carvão libera carbono que não absorveu”, ressalva ele. Com base nesses argumentos, desde 2017 a Votorantim Cimentos usa açaí no lugar de um resíduo de petróleo, o coque, para abastecer parte dos fornos de sua fábrica na cidade de Primavera, no Pará.
“Os caroços do açaí são apenas uma das possibilidades de aproveitamento econômico de resíduos da Amazônia”, enfatiza Nogueira. Em um artigo publicado em outubro na revista Energies, ele descreveu as propriedades energéticas do caroço de açaí e de outros 65 resíduos agroflorestais amazônicos. A planta com o maior poder calorífico foi o pau-preto (Cenostigma tocantinum ducke), seguida pelo caroço de tucumã (Astrocaryum aculeatum) e a casca de babaçu (Orbignya speciosa). O caroço de açaí aparece em 23º lugar.
Fonte: Um só Planeta
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